Páginas
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Estou lendo...
Estou lendo. Sempre leio. Ler é como me perder por caminhos que não os meus, é poder me encontrar em caminhos que outros indicam. É mais fácil. É só seguir, deixando-me levar para lá, para cá, como folha solta, sem me importar se serei levada ao alto ou para o atoleiro. Em qualquer lugar, eu sei, tenho algo para aprender. Estou traindo ao ler. Sim, estou. Traio Hesse, a quem reverencio, a quem me devoto. Uma devoção quase cega, perigosa, como são todas as devoções. Ao trai-lo abri portas para o novo. Ele não sabe, mais eu sei, e eu sabendo, basta. Leio e invento, invento uma presença que não existe, que jamais existirá. Presença fantasma. Invento uma mão estendida que nao encontro. Invento, sim! - sou boa em inventar. Em fugir também sou boa. Quando não consigo, eu fujo. Escondo. Até chorar eu choro escondida. Jamais pensariam que choro - não em baldes, bacias, córregos, não tanto. É, jamais pensariam, não acreditariam, nem mesmo se vissem. E também não entenderiam.
Alguém, praticamente um estranho, disse-me: Tu tens jeito de quem gostaria do que estou lendo. Mal me viu algumas vezes, como pode saber o jeito que tenho, o gosto que tenho? Há mesmo muita pretensão nesse mundo - pensei. Mas, curiosa, perguntei: o que estás lendo? Então ele tirou,de uma pasta surrada, no meio do corredor, um livro: pequeno, quase insignificante. Amassado, cheio de anotações feitas a lapis. Pensei comigo: o que inventará essa criatura? Nem inventou, a não ser a atrevida atitude que eu não esperava. Ele leu:
"Por enquanto estou inventando tua presença, como um dia não saberei me arriscar a morrer sozinha, morrer é do maior risco, não saberei passar para a morte e pôr o primeiro pé na ausência de mim - também nessa última hora e tão primeira inventarei tua presença desconhecida e contigo começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir, e então eu te libertarei. Por enquanto eu te prendo, e tua vida conhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem a tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri."
Parei de caminhar. As palavras, uma a uma foram entrando. Pelos ouvidos, pela pele, pelos poros. Virei-me para ele e sorri. Pensei: alguém sabe meu jeito, percebe meu gosto. Não estou tão perdida assim.
- Tu devias sorrir mais - disse sem me olhar enquanto guardava o livro de volta em sua pasta.
Música_ Michael Bublè _ Lost
Imagem_João Parassu
Assinar:
Postar comentários (Atom)
O trecho lido é de Clarice Linspector em A Paixão Segundo G.H.
ResponderExcluirQue não ler, perde.
Quem ler, não se perde.
.
O meu carinho as passantes.
.
.
...
aos* rs
ResponderExcluirLispector* (uia q tá danado hoje *rs)
ResponderExcluiradorei o texto, muito criativo e claro. Vou passear por teu blog e desfrutar mais desse momento.
ResponderExcluirBeijão no coração.
Bom dia
ResponderExcluirEspero que tenhas feito um bom passeio, sem tropeços pelas raízes que deixo espalhadas.
E que o riso que ouvi, nao tenha sido teu, ao leres as minhas cartas. *rs
.
Obrigada pela presença!