última carta

Caro amigo,

Levantei-me há pouco, embora já estivesse acordada há muito. O sol, manhoso, espiava por entre as frestas da minha janela, convidando-me ao mundo. Que mundo, perguntei? Em silêncio, como quem sofre por dor inútil, ele se foi. Deixou uma penumbra, uma sombra esmaecida, entre as paredes que tão bem conheço e que já foram testemunhas, também silentes, de muitos momentos. Sobre eles nem te falo, porque pertencem a um outro país, distante, perdido, chamado passado.

Arrastei-me pela casa, abrindo-a para o mundo, e, também , abrindo-me a novas possibilidades. Há tantas! O dia está tão lindo, e de tão lindo, parece convidar-me para a vida. Abri a casa, abri minhas gaiolas. Tenho tantas dentro de mim, e nelas prendo as coisas mais absurdas. Coisas que jamais deveriam ser presas. Por que as prendo? Por medo, puro medo. Esse meu jeito, torto, avesso, arredio, é apenas o meu medo em forma de gaiola. E delas, solto apenas as letras, essas que pingam aqui, como pinga no chão o sangue de um ferimento profundo.

Sim, fui cortada, mutilada. Não,não. Ninguém tem culpa. A culpa é apenas minha. Minha foi a mão que segurou o estilete, e meu era o sorriso a cada corte. Parece estranho, mas amei cada momento, cada pedaço que me era arrancando, cada dor que me era causada. Sentia-me tão viva! Arrastava-me, sangrenta, pela vida, e sorria. Minhas letras são como aquele estilete. Ele, corria pela pele nua; as letras, pela branca tela. Deixo que corram. Deixo que sangrem e que me sangrem. Não quero mais gaiolas, não quero mais prisões. Nem mesmo pro meu medo. Quero soltá-lo. Quero que conheça uma nova existência - quem sabe esse mundo ao qual o sol convida todos os dias.

Tenho essa como a última carta. Não queria mais escrevê-las. Elas mostram um lado meu que não suporto. E depois, são apenas cartas...apenas cartas. Cartas que atravessam o tempo, a geografia, e quem sabe a minha história, mas ainda assim, apenas cartas. Talvez se acumulem em alguma lixeira; talvez sejam consumidas por algum fogo - que em nada se parece com o que me consome; talvez amareleçam em alguma gaveta, estante, gaiola.

Hoje não me estendo muito, porque toda essa confusão, mistura, insanidade, poderia ser resumida numa única frase: Caro amigo, dá-me tua mão desconhecida, porque a realidade está difícil de levar.

Sendo assim, sento-me ao teu lado,ofereço minha mão e deixo que ela se perca no vazio. Um abraço, daqueles que gosto de dar, esganadeiros, que têm apenas um intuito: esmagar tudo o que for ruim.

Despeço-me e prossigo...


imagem_preludio_ jose de almeida
música_ Samba en Preludio - Baden Powell & Laurindo Almeida