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quarta-feira, 30 de junho de 2010

mais uma carta, a sexta




















Caro amigo,

Em minhas andanças pelas ruas solitárias quando as manhãs se avizinham, tenho pensado - é , eu penso. Penso o tempo todo. Talvez para ter a certeza de que existo. São pensamentos fortes. Doídos. A passos lentos, eu penso. Penso na existência, na minha vida. Será a vida algo tão insípido? Tão carente de sentimentos apaixonados? Penso para tentar entender. Tu entendes? Olho ao redor e vejo vivas almas a caminhar. Vivas, porque caminham, mas parecem tão...tão...tão mortas! Há quem seja assim, não? Morto que caminhe? Ah, devo estar delirando! Releve, por favor, releve...

Bem, não hoje,mas ontem, numa dessas minhas andanças, nem noite nem dia, parei em frente à uma vidraça. Opaca, suja. Não, imunda. A lua refletia-se nela, embaçada, atrapalhada, envergonhada por estar ali, por fazer parte daquele pedaço morto de matéria. O que vi, meu amigo, é algo de se guardar no mais fundo da alma, para que de lá seja retirado apenas em noites do mais puro terror: um olhar! Um olhar estranho, que ainda não me fora apresentado. Um olhar emoldurado por um rosto que não era o meu. Era um rosto desfigurado pelas traças do tempo. Mas o olhar...ah, o olhar...aquele olhar. Nem vivo nem morto! Agonizante... Sim, agonizava preso à imundície daquela vidraça. Em silêncio, agonizava. Senti medo. Senti pena. Afastei. Ele também. Voltei. Ele voltou. Ficamos os dois, a nos olhar, presos, um dentro do outro. Tão profundo, tão distante, tão escondido, aquele olhar.

Quis sentir-lhe o gosto. Será que tinha o gosto salgado das lágrimas? Aproximei. Ele também. Abri a boca. O rosto que o emoldurava também. Deixei que minha língua escorregasse devagar em direção do olhar. Fechei os olhos, porque, naquele momento, era incapaz de continuar olhando. E lambi. Lambi a vidraça, suja, imunda. Lambi a dor, lambi a agonia, lambi as feridas, lambi o olhar.

Abri os olhos. Ele continuava a me fitar. Eu sentia seu gosto na minha boca e toda a sua dor na minha alma. Perguntava-me: por que não chora? Por que não grita? Por que ao menos não sangra? Fechei as mãos em punho e bati forte. Queria provocar alguma reação. Não era água, era vidro. Nem se mexeu. Afastei-me. Ele também. Afastei-me mais, chorei. Ele chorou. Quis correr. Não consegui. Estávamos presos, ligação invisível, fria. Gelada. Tento não lembrar daquele olhar. Não é meu, não me pertence. Mas ele está aqui, em mim, no meu tudo, no meu nada. Corre, misturado ao meu sangue.

Queres o meu abraço? Acho que hoje ele também está como aquele olhar: nem vivo nem morto, agonizante.


música_ turn me on _ norah jones
imagem_ hugo tinoco


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6 comentários:

  1. as cartas correm, discorrem, levando um desabafo, seja à tela, seja ao papel, seja a quem lê...
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    em algum lugar, ele há de parar...
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    é necessário que pare!
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    abraços, carregados de carinho, a todos que por aqui passarem...
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    ...

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  2. O 'quarto' desenvolvido pela imensidão da casa nova, ganha o esplendor da luminosidade quente, atribulado com novas ideias, sugerindo outras, fazendo nascer um mar de 'hipóteses' para um ar de conforto. Nas mãos os desenhos, nos olhos os sons da música, os gestos enquadram os projectos, falados, dançados, debruados pelo riso, exclamados pelas cores abertas na plenitude da invenção....

    Cresce o 'quarto' pela casa, outra dimensão...ocupada já pelo futuro que nos acontece hora a hora. Lembra o verão, a lua lá fora a encher de prata o silêncio da noite, a aquecer a memória dos sons e das cores que mutam despreocupadamente no Media Player. Ela, pára...fala que vai mimar uma Cor Pura e sai correndo ao choro que anuncia aquela Vida, sempre mais importante do que Tudo...fico de olhar fixo no tecto, para lá da janela...para além do 'quarto', acima da Terra [entre o ar dos sons], descoberto pela imensidão azul da Lua que espreita na janela..límpida e translúcida.

    É tempo, poiso o sonho, no lugar das coisas, onde se conserva a conversa, me plagio perante a 'tela'....e, desligo a luz. Levanto-me, ainda com o som das areias sopradas pelo vento_[na]_mente, aquela flauta gemendo..chego na vidraça tão cheia de trasnparências...

    Sempre observamos o lado da vidraça que queremos ver.

    Um sorriso deixo.

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  3. Todos temos coisas a relembrar, não?
    Momentos especiais, que marcam, que tatuam.
    Em alguns momentos, colocamo-nos de um lado da vidraça - nem importa por quais motivos, porque naquele momento é o que precisamos. Precisamos saber que há mais de um lado, e que todos são importantes.
    Escrever - já o disse várias vezes, mas repito - é como confessar. E ao confessar, alivia. É como repartir a angústia, a dor, a agonia. Não que se viva em eterna agonia, mas em momentos de.
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    O outro lado de escrever - porque também ele tem mais de um lado - é ver as interpretações que causa, as lembranças que traz, as emoções que proporciona.
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    Amo escrever, amo ser lida, amo saber que com a forma, às vezes estranha, que junto as letras ( sempre desobedientes e teimantes) consigo fazer surgir algum tipo de emoção.
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    Deixo um carinho...

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  4. é, temos..e para que tal aconteça, lanço em espiral rodopio, fragmentos de bruxedo, cores difusas em profusão, lágrimas de anjo em delírio....sinto no [ar] sedosos passarem pela [pele] miríades de espectros alvos em sorrisos aveludados....doce mar de suave abraço, doce olhar rasando em sonhos acordados, visão de limbos paralelos espelhos fundos em faces de água...áh!! eu sei lá, vejo aves que voam e circulares são as [mentes] que nascem tão antigas...

    lá em cima...naquele embaciado, eu vi no silêncio a face negra que assomou arfante e medonha, rindo em cascatas de agulhas em arsênica forma...[senti] como que, um ardor arremessado uma tentativa de libertar a face no embaciado aprisionada...razão tens ao dizer que se pode [intuir as palavras]..algumas infiltram-se-nos nos poros todos..como um lodo desmesurado, um veneno símbolo que mata [Bruxos&Fadas] em asfixia de cianetos...

    consegues...tens palavras com poder de rasgar a alma.

    um laivo de luz...deixo.

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  5. Buenas tardes, escritora de cartas.

    Passando para testar os links.

    Beijos ...

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  6. Nunca tenho medo de minhas lembranças com elas tenho lindos sonhos. Sempre me emociona estar aqui e assim meus olhos continuam brilhando! Meus beijos deixo aqui.

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Minhas letras são sementes que precisam do teu olhar, da tua presença, para germinarem e gerarem algum tipo de alimento para a alma.
Obrigada pela presença.